segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A dimensão estética das desigualdades sociais modernasEm uma excelente análise acerca das formas de classificação intersubjetiva entre os indivíduos modernos Pierre Bourdieu, em seu Dintinción (2002), mostra como a diferenciação simbólica entre as classes e os segmentos de classe naturaliza-se objetivamente em tipos diferenciados de gente. Isto causa impactos psíquicos profundos na medida em que afeta diretamente a condição emocional dos indivíduos causando depressão, timidez e baixa auto-estima, o que resulta diretamente em impactos sociais concretos, dificultando o desempenho individual nas relações diante do outro, principalmente quando o outro é alguém favorecido pelos signos da distinção.A mesma lógica e aplicada por Bourdieu, agora em seu Dominação Masculina (1999), quando analisa a forma como os gêneros são transformados em discursos, onde uma classificação cultural camufla-se em aparências naturais. Nesta perspectiva ele identifica o corpo como principal portador e reprodutor de diferenças hierarquizantes socialmente construídas. Este processo ocorre na aquisição do habitus, que para ele significa um conjunto de esquemas avaliativos e formas de comportamento incorporados pré-reflexivamente pelos indivíduos em sua trajetória de vida.Sendo assim, desejo aplicar estas categorias interpretativas a dois aspectos centrais da vida cotidiana: as relações profissionais e as relações afetivas. De acordo com Axel Honneth, em seu Luta por reconhecimento, estas são duas esferas intersubjetivas fundamentais para a construção da auto-estima e autoconfiança dos indivíduos (Honneth, 2003) Ademais, Charles Taylor desenvolve nesse sentido a velha tese weberiana da afirmação da vida cotidiana ressaltando que as esferas do trabalho e da família passam a ser na modernidade o centro de nossa valoração e sentido, bem como da constituição de nossa identidade (Taylor, 1997). De modo que estas questões tocam hoje no cerne de nossa existência. Por isso é fundamental compreender os detalhes das distinções sociais nestes aspectos. Aqui eu desejo acrescentar a função diferenciadora exercida pelos critérios estéticos de classificação relacionados aos padrões de beleza. Neste ponto é necessário lembrarmos os signos de classificação estética naturalizados na sociedade ocidental moderna, bem como a forma como lograram eficácia.Estes signos são tipos étnicos e genéticos que estão culturalmente classificados em uma hierarquia muito bem definida. Esta classificação está internalizada em nosso imaginário coletivo, condicionando nosso olhar diante das formas físicas do outro e de nossa própria. Isto significa que o indivíduo moderno, a todo momento, conscientemente ou não, situa a si mesmo e ao outro dentro de uma classificação estética arbitrariamente pautada em diferenças físicas.Esta hierarquia possui uma origem complexa. No mundo ocidental, temos como belo o modelo físico do europeu, em conseqüência do fenômeno eurocêntrico da colonização, em detrimento dos demais tipos físicos. Este padrão se desenvolveu na medida em que se consolidou, nas nações colonizadas, um modelo de sociedade desigual dominado pelos brancos europeus. Sendo assim, a afirmação da imagem do europeu como mais evoluído, superior, inteligente e belo, é fundamental para a eficácia simbólica da distinção social estética. A afirmação da imagem, na verdade, é uma naturalização de uma hierarquia entre corpos mais perfeitos e menos perfeitos.Neste ponto, gostaria de chamar a atenção para o fato de que a cor da pele nem sempre consiste no critério mais importante dessa classificação. O padrão sutil e subliminar de beleza está muito mais implícito nos traços do rosto e nos cabelos do que na cor da pele. Um negro de traços faciais finos, típicos do europeu, geralmente é percebido como mais belo do que um branco de traços largos, típicos dos africanos. Neste contexto os nordestinos, por exemplo, sofrem preconceitos sutis relacionados a sua aparência, principalmente nos núcleos regionais de maior colonização européia.A construção e difusão do olhar estético condicionado se processa de forma subliminar, nas entrelinhas, nos signos. Neste sentido, a mídia reflete e reproduz com impressionante vigor estes padrões estéticos. É importante lembrar que estes padrões, além de se materializarem em tipos físicos naturalizados, se esquematizam e combinam também em tipos de comportamento e em modismos, na lógica entendida por Bourdieu como uma disputa entre as classes e grupos sociais pelo monopólio do “gosto”, compreendido como um jeito sofisticado e especial de ser que concede a algumas pessoas o status de naturalmente melhores (Bourdieu, 2002).Depois deste breve parêntese acerca da formação da distinção estética, podemos nos concentrar na análise de seus impactos psicossociais nas relações profissionais. Neste campo tão importante da vida cotidiana, os resultados dessa diferenciação podem ser irreversíveis. Por exemplo, um indivíduo classificado como feio pode enfrentar uma extrema timidez acompanhada por dificuldades de expressão quando estiver diante de uma entrevista de emprego. Isso quando sua oportunidade não é vetada mesmo antes, como nos conhecidos anúncios que solicitam “boa aparência”. Aqui identifico uma espécie de capital estético, que em muitos casos pode definir a situação a priori, abrindo ou fechando portas nas diversas esferas da vida pública.O ponto que quero destacar aqui é que a baixa auto-estima causada nos indivíduos classificados por baixo na hierarquia estética, desde que ele inconscientemente incorpore e internalize sua inferiorização como inferioridade, pode causar danos psíquicos irreparáveis como, por exemplo, a desistência diante de determinadas situações profissionais ou simplesmente públicas em que costuma fracassar. Isto significa que a estética contribui de forma gigantesca para a sensação de fracasso ou sucesso pessoal e moral nas sociedades modernas.O último aspecto desta análise diz respeito aos impactos psicossociais no campo das relações afetivas. Principalmente nesta dimensão tão importante para nossa individualidade, as conseqüências emocionais da distinção estética através da posse ou não do capital estético socialmente distribuído são avassaladoras. Isto por que, conforme Honneth em sua análise sobre a família, as relações afetivas tocam na dimensão primária de nossa natureza (Honneth, 2003). O problema aqui está na timidez e introversão geralmente causada nas pessoas desfavorecidas pela diferenciação simbólica. Os resultados são reais, considerando que a inibição nas relações afetivas pode causar profunda solidão, seja com respeito a relacionamentos amorosos, seja com respeito a amizades, o que pode levar à depressão e até mesmo ao suicídio.O condicionamento do olhar pode ser muito bem percebido na fragilidade dos relacionamentos afetivos modernos, onde o interesse individual socialmente condicionado, na maioria dos casos, privilegia a beleza física acima de qualquer outro critério. Este é um bom exemplo de como os indivíduos sociabilizados são moldados a determinadas formas sociais que pré-direcionam seu gosto e seu olhar.Além do mais, podemos pensar também nos indivíduos situados fora do modelo físico simétrico considerado normal, ou seja, os portadores de diferenças físicas assimétricas de qualquer espécie ou pessoas de qualquer tipo de aparência incomum. Nestes casos, o que predomina é a estética da maioria, concebendo assim as minorias diferentes como verdadeiras anomalias físicas e conseqüentemente sociais. Também neste tipo de hierarquização os impactos psicossociais podem ser devastadores, tanto no mundo social, seja em sua dimensão pública ou privada, afetiva, profissional ou de qualquer outro caráter, quanto no complexo mundo subjetivo individual.Deste modo, uma mudança em nosso olhar se faz urgente. Isto por que as classificações simbólicas, como aquelas já estudadas por Bourdieu entre classes e gêneros, assim como as estéticas ressaltadas aqui, são fenômenos complexos que invisivelmente contribuem para a perpetuação das diferenças sociais. Na modernidade, nosso olhar economicista condicionado pela forte presença do capitalismo competitivo em nossas vidas não consegue tematizar estas questões, e é exatamente por passarem despercebidas que alcançam tanta eficácia na reprodução de nossas diferenças. Sendo assim, podemos compreender então que igualdade é também uma questão moral, compreendida aqui como pano de fundo normativo que conduz nossas atitudes, além de material. O acréscimo desta perspectiva em nossa autopercepção é um avanço indispensável na luta contra as desigualdades modernas.

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